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LGPD: Concessionária é condena por captação indevida de imagens de usuários

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) manteve a condenação da Via Quatro, concessionária da Linha Amarela do metrô de São Paulo, por utilizar indevidamente o sistema de câmeras de segurança para captação de imagens de usuários com fins comerciais e publicitários. O órgão colegiado votou pelo aumento do valor do dano moral coletivo, que foi fixado em R$ 500 mil e será revertido para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD).

Fora proposta ação civil pública em face da Concessionária da Linha 4 do Metrô de São Paulo S.A. (Via Quatro) pedindo a proibição de coleta e tratamento de imagens e dados biométricos tomados, sem prévio consentimento, de usuários das linhas de metrô operadas pela ré, localizados em sete estações e a condenação da ré.

Pretendia-se a condenação da ré a não utilizar dados biométricos ou qualquer outro tipo de identificação dos consumidores e usuários do transporte público, sem consentimento do usuário.

Diante disso, a MM Juíza entendeu que:

(…) Diante do fato incontroverso de que havia equipamentos de gravação de imagens dos usuários para fins publicitários e estatísticos nas estações administradas pela ré, cabia a essa na qualidade de concessionária de serviço público, demonstrar cabalmente que o sistema não armazena dados pessoais dos usuários da plataforma, tampouco realiza o reconhecimento facial pelo equipamento instalado, a ausência de gravação ou filmagem dos usuários e a real destinação dada ao material obtido, se o caso, o que não ocorreu.

(…)E ainda que se constatasse concretamente a ausência de efetivo reconhecimento facial pelo equipamento instalado, não dúvidas de que captação da imagem de usuários, sem o seu conhecimento ou consentimento para fins comerciais que beneficiam a ré e a empresa por ela contratada

(…)Portanto, inexiste controvérsia acerca da detecção da imagem dos usuários, bem como captação e reconhecimento de informações como gênero, faixa etária, reação à publicidade veiculada no mesmo equipamento, entre outros.

 

a Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados LGPD), em seu artigo 1º, estabelece como objeto:

“o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por  pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.”

 

O artigo 5º, II do referido diploma legal, por sua vez, conceitua o dado pessoal sensível como:


“dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de
caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural”

 

Não obstante a ausência de esclarecimentos sobre o alcance dos itens apresentados no referido artigo, os dados biométricos foram posteriormente detalhados através do Decreto 10.046/2019, que prevê no artigo 2º, II:

“características biológicas e comportamentais mensuráveis da pessoa natural que podem ser coletadas para reconhecimento automatizado, tais como a palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar”.

 

Desta forma, o reconhecimento facial ou mesmo a mera detecção facial, sem que seja possível a identificação concreta do indivíduo, mas com acesso à sua imagem e face, parece já esbarrar no conceito de dado biométrico, legalmente considerado como dado pessoal sensível, daí porque merece tratamento especial à luz da Lei nº 13.709/2018 .

Anote-se que a LGPD estabeleceu proteção especial aos dados pessoais sensíveis, autorizando o seu tratamento somente na hipótese de consentimento claro e específico pelo titular do dado, ou, sem o consentimento do titular, nas situações elencadas no rol do inciso II do artigo 11 da LGPD, não se vislumbrando nenhuma das hipótese no caso em tela.

Não é demais lembrar que o artigo 2º da referida lei preconiza como fundamento da disciplina da proteção de dados, dentre outros, o respeito à privacidade, a autodeterminação informativa, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, a defesa do consumidor, os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade e a dignidade.

Ainda, a finalidade do tratamento deve ter propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades (art. 6º, I).

De outro lado, o §3º do artigo 11 dispõe que “A comunicação ou o uso compartilhado de dados pessoais sensíveis entre controladores com objetivo de obter vantagem econômica poderá ser objeto de vedação ou de regulamentação por parte da autoridade nacional, ouvidos os órgãos setoriais do Poder Público, no âmbito de suas competências.”

A situação exposta no caso concreto é muito diferente da captação de imagens por sistemas de segurança com objetivo de melhoria na prestação do serviço, segurança dos usuários ou manutenção da ordem, o que seria não só aceitável, mas necessário diante da obrigação da fornecedora de serviço público zelar pela segurança de seus usuários dentro de suas dependências. É evidente quea captação da imagem ora discutida é utilizada para fins publicitários e consequente cunho comercial, já que, em linhas gerais, se busca detectar as principais características dos indivíduos que circulam em  determinados locais e horários, bem como emoções e reações apresentadas à publicidade veiculada no equipamento.

Forçoso reconhecer dentre os usuários cujas imagens estão sendo captadas se encontram crianças e adolescentes usuários do serviço público, cuja proteção e preservação da imagem e direitos é prioridade absoluta do Estado, conforme disposto no artigo 227 da Constituição Federal. A LGPD estabelece também proteção especial à criança e adolescente, na forma do seu artigo 14: “O tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos deste artigo e da legislação pertinente.”
No mesmo sentido, o artigo 17 do ECA assegura à criança e ao adolescente “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

O tratamento jurídico em relação ao tema da proteção de dados pela legislação pátria e pela comunidade europeia, que discutiu amplamente o tema por quase 30 anos, é uma baliza importante respeitada a legislação aplicável in casu – para determinar os contornos da solução proposta no julgamento do recurso, principalmente diante da relevância de tema tão atual e global.

O Regulamento Geral sobre Proteção de Dados europeu “GDPR” – do Parlamento Europeu e Conselho da União Europeia, foi assinado em 2016. A experiência europeia sobre o tema é mais antiga, isso porque referido regulamento revogou a Diretiva de Proteção de Dados (Diretiva 95/46/CE), vigente desde 1995.

Assim, conforme concluiu o julgado,  inegável que conduta da concessionária viola patentemente o direito à imagem dos consumidores usuários do serviço publico, as disposições acerca da proteção especial conferida aos dados pessoais sensíveis coletados, além da violação aos direitos básicos do consumidor, notadamente à informação e à proteção com relação às práticas comerciais abusivas, daí porque o pedido de obrigação de não fazer consistente em não se utilizar de dados biométricos ou qualquer outro tipo de identificação dos consumidores e usuários do transporte público, sem a comprovação do devido consentimento do consumidor é procedente.

Por fim, foram reconhecidos, os danos morais coletivos, para prevenir a prática do mesmo tipo de ilícito e sem incorrer em enriquecimento sem causa, o importe de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) .

 

Rogério Santos é advogado, pós-graduado em direito digital e LGPD.

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